VOCÊ FAZ UM PRONTUÁRIO QUE POSSA PROTEGÊ-LO?
Por Miguel Angel Suárez Ortiz, OAB-AC 1716
Ao longo destes últimos vinte anos de exercício profissional defendendo médicos em diversas instâncias judiciais e administrativas do estado, tive que enfrentar como grande complicador para o bom êxito do meu trabalho, a concisão e imprestabilidade dos prontuários, quase sempre ilegíveis e desprovidos de informações éticas e técnicas obrigatórias.
Sempre me perguntei sobre o motivo pelo qual estes profissionais tratam com tanto desleixo a segurança ética e jurídica deles bem como as provas de que foi prestado um bom atendimento. Nas entrevistas que fiz as respostas sempre foram: “falta de tempo”, “excesso de pacientes” ou “cobranças da administração para “agilizar” o atendimento”. A maioria também afirmou que na consulta particular o prontuário é preenchido da mesma forma, sem que essa assertiva se mostrasse verdadeira quando realizada a conferência documental. O prontuário, neste caso, é bem mais explícito, porém sempre incompleto no que diz respeito a requisitos legais.
Assim, com a intenção de motivar a revisão destas condutas, necessário se faz revisar a legislação e alguns conceitos.
Recordemos primeiro que aqui no Brasil, a lei outorgou ao Conselho Federal de Medicina competência e autonomia para supervisionar - fiscalizar e regulamentar - a ética médica em todo o país. Apesar de esta atribuição normativa vir sendo rotineiramente invadida até pelo Ministério da Saúde, recordemos que para fins e efeitos legais de competência, vale como norma superior o disposto no Código de Ética Médica e nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina.
O Código de Ética Médica atribui aos Conselhos Regionais de Medicina, às Comissões de Ética e aos médicos a fiscalização do cumprimento das Normas Éticas, também definidas pela autarquia.
Estabelece como princípios fundamentais, dentre outros:
- que o alvo de toda a atenção do médico é o paciente;
- que para exercer a Medicina o médico precisa de boas condições de trabalho e remuneração justa;
- que o médico tem AUTONOMIA, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência;
- que o médico NÃO PODE, em nenhuma circunstância ou sob pretexto algum, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir RESTRIÇÕES ou IMPOSIÇÕES que possam prejudicar a eficiência e correção do seu trabalho.
Do exposto resulta fácil constatar que as desculpas utilizadas pelo médico para deixar de praticar atos devidos e para justificar prontuários incompletos, ilegíveis e desprovidos das certificações e das provas que motivaram a transgressão ética por falta de recursos e meios competentes, ficam sem sustentação legal diante qualquer reclamação de paciente.
Nada do alegado justifica um prontuário capenga onde não conste o registro de TODOS os atos praticados. Ao contrário, esses prontuários provam que o médico agiu com negligência, imperícia ou imprudência, inclusive por não produzir um documento na forma legal. Qualquer uma destas figuras jurídicas implica em condenação por tipificar CULPA.
QUAL A ORIGEM DESTE PROBLEMA?
Destaco como pressuposto que na rede pública o médico não é contratado para atender determinado quantitativo de pacientes senão para trabalhar durante um período de tempo – 6, 12 ou 24 horas.
Buscando a qualidade do atendimento médico e devido à importância do primeiro atendimento ou consulta inicial, foi padronizado que a anamnese e o exame físico devem ser realizados no lapso de 15 minutos. Assim, a coleta de informações e antecedentes deve ser completa e possibilitar a maior e mais acurada investigação de fatos e sintomas que sustente a hipótese diagnóstica. Essa hipótese deve ser consolidada com o exame clínico do paciente, buscando confirmar a informação oral com sinais físicos e, quando necessário, com exames complementares de laboratório e/ou imagens. Segundo o Conselho Federal de Medicina, quando bem conduzida a anamnese, ela responde por 85% do diagnóstico na clínica médica, liberando 10% para o exame clínico (físico) e apenas 5% para os exames laboratoriais ou complementares.
A despeito do acima descrito, os médicos afirmam ser impossível realizar este tipo de atendimento em face da grande quantidade de pacientes e das cobranças dos gestores. Entretanto, quando surgem os reclamos e as denúncias, pacientes e gestores são os primeiros em crucificar o médico, acusando-o de negligencia, imperícia ou imprudência na consulta inicial. É rotina ouvir: “nem olhou para minha cara e já foi prescrevendo!”
Retornemos ao vínculo contratual. O compromisso do médico é com a qualidade do atendimento, não com a quantidade! Qualidade só se consegue observando normas e condutas éticas. Tenho certeza que nenhum paciente ou familiar reclamaria se o médico utilizasse os 15 minutos previstos para anamnese e exame clínico do paciente.
No que diz respeito à quantidade de pacientes em cada unidade, esse problema é do gestor, não do médico. Jamais ouvi gestor reclamar que médico demora demais com cada paciente. Ouvi reclamar que médico não comparece logo que é chamado para atender, coisa que é completamente diferente. Recordemos que, por explícita determinação legal, o médico deve dispor de 10 minutos de descanso a cada 90 minutos de trabalho. Se isso não for respeitado. Acione seu Diretor Técnico, reclame na Comissão de Ética de sua unidade, busque apoio do Sindicato ou peça suporte do CRM.
Padronizando sua consulta nesses 15 minutos, com certeza o médico disporá de um prontuário bem elaborado, inclusive com registro do tempo gasto, exigência classificada como indispensável!
Também deve constar registro da ausência de condições e meios de trabalho bem como de recursos auxiliares de diagnóstico e terapia. De nada adianta deixar de anotar estas deficiências para depois, durante o processo, tentar provar que eles não existiam, porque é obrigação do médico fazê-lo no prontuário. Aqui, como no jogo do bicho, só vale o que está escrito!
O QUE FAZER?
A única conduta possível é passar a exigir dos gestores condições de trabalho, ademais de meios e recursos complementares de diagnóstico e terapia indispensáveis para o bom exercício da Medicina, tal como disposto no Código de Ética Médica.
A exigência deve ser encaminhada ao médico Diretor Técnico da unidade hospitalar. Lembro que o Diretor Clínico não dispõe de competência para esse fim. Caso não exista Diretor Técnico, peça informações ao CRM e exija que essa autarquia obrigue o gestor a designar um. Também pode pedir auxílio jurídico ao Sindicato. Ainda há possibilidade de encaminhar a denúncia à Comissão de Ética Médica da unidade. Caso não exista esta Comissão, o médico deve exigir do CRM informações e providências.
Lembre que os Conselhos Regionais de Medicina são os únicos com competência legal para exigir do gestor o cumprimento da lei e que é direito seu cobrar providências do CRM. O Sindicato fiscaliza as relações contratuais e as condições em que é realizado o serviço, porém não conta com força legal para ajuizar qualquer ação sobre questões éticas, a não ser contra o CRM por omissão de administração. Superada esta etapa, retornemos ao motivo deste texto – falta dos registros legais dos atos médicos determinados e praticados pelo médico.
Fique claro que o PRONTUÁRIO do paciente é o ato médico de maior importância e valor legal para absolver ou condenar um profissional! Prontuário tem exigência e definição ética.
O art. 87 do Código de Ética Médica VEDA ao médico deixar de elaborar PRONTUÁRIO LEGÍVEL para cada paciente. O parágrafo 1º do art. 87, determina que o prontuário DEVE CONTER os dados clínicos para a boa condução do caso, sendo preenchido, EM CADA AVALIAÇÃO, EM ORDEM CRONOLÓGICA, COM DATA, HORA, ASSINATURA E NÚMERO DE REGISTRO DO MÉDICO no CRM.
A Resolução n.º 1.638/02 define prontuário como “documento único, constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registrados, gerados a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo”.
Pois, durante esses 20 anos de trabalho, são raríssimos os prontuários que utilizei para promover defesas de médicos que preenchessem esses requisitos. A caligrafia, às vezes, nem o médico era capaz de decifrar o anotado. Os registros sempre paupérrimos, sem anotações sobre antecedentes familiares e de vida, alimentação, moradia, usos, costumes e doenças anteriores, dando a entender que o paciente não foi ouvido.
Destaque-se que as anotações feitas pela enfermagem na admissão não podem ser consideradas como suficientes para o diagnóstico médico. Na maioria dos casos não há constância de exames físicos, omissão geralmente confirmada pelo paciente. Tampouco há hipótese diagnóstica, nem DATA e/ou HORA do atendimento.
Ou seja, por negligência pura transforma-se um instrumento fundamental de defesa, em prova de falta ética. Sem os registros devidos o prontuário somente serve para provar a inexecução de atos médicos que deveriam ter sido obrigatoriamente praticados. Recordemos que o profissional dispõe de AUTONOMIA técnica para definir o tempo da consulta assim como para requisitar os exames que entenda devidos para debelar a doença.
Outros argumentos exigem enorme esforço para serem comprovados como, por exemplo, a alegação de não conseguir escrever direito devido à doença nas mãos ou no punho. Portanto, senhores médicos, inexiste motivo para atender paciente desrespeitando as normas éticas e os protocolos técnicos. Trata-se de conduta inadmissível tanto quanto pretender delegar essa responsabilidade a paramédicos
Em reforço, destaquemos que a Organização Mundial da Saúde, assentou que o prontuário do paciente deve conter a data do nascimento ou idade aproximada, sexo, estado civil, registro de internação e alta, diagnóstico provisório, relatório das intervenções cirúrgicas, descrição do estado de saúde na ocasião da internação e alta e o motivo desta, causa de óbito, diagnóstico principal, outros diagnósticos. Ainda há de ter registro, também, de data e hora dos atendimentos, nome completo e assinatura do profissional assistente com seu número de inscrição no respectivo conselho de classe. Usar carimbo. Em caso de assistentes não médicos, como alunos em treinamento, é necessário que sua assinatura conste ao lado da do titular atendente. É importante o médico anotar com detalhes e extensivamente, no prontuário, todos os procedimentos realizados, justificar as condutas adotadas, descrever o estado do paciente durante o atendimento, relatar diagnósticos, pareceres e as dificuldades de assistência.
O médico tem obrigação ética de bem agir e DEVE provar que assim o fez. O único instrumento válido para esse fim é o prontuário bem feito. Do contrário, prepare-se para os certos dissabores e prejuízos que você deverá suportar, porque nessa hora ninguém lembra nada.
Um comentário:
Parabéns Rodrigo. Excelente matéria. Extensivos ao Dr Angel Ortiz.
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