Um modelo incompleto, inseguro, restritor de direitos, confuso, incoerente, conflitante em si, vazio de conteúdo e sem a presença dos outros atores necessários ao seu funcionamento mas encapado com um belo discurso filosófico e bonito de estética. O novo modelo em discussão na DIRSAT-INSS parece mais um placebo perfumado e não resistiu ao mais simples crivo crítico dos servidores paulistanos.
Em um tour pelas cidades da Grande SP essa semana, o diretor de saúde do trabalhador do INSS, Dr. Sérgio Carneiro, se esforçou para tentar convencer os peritos e assistentes sociais da importância do novo modelo pericial que vem construindo nos últimos meses. Anteontem foi a vez da capital paulista receber o ilustre servidor para sua palestra.
Resumidamente a proposta do Dr. Carneiro é calcada nos seguintes pilares:
1) Concessão automática de benefícios de curta duração através de ação meramente administrativa.
2) Interposição da perícia médica nos casos de benefícios mais longos.
3) Atuação precoce da reabilitação profissional e das chamadas "equipes multiprofissionais"
4) Requalificar o trabalhador e reinseri-lo no mercado de trabalho.
É assim que o Dr. Carneiro acha que irá resolver o problema da demanda por auxílio-doença no INSS.
Sua palestra já começa errada no título: "Modelo de avaliação da CAPACIDADE laborativa". Não é missão institucional do INSS avaliar "CAPACIDADE" laborativa, essa é a missão precípua do Ministério da Educação na parte da formação e instrução e do Ministério do Trabalho na parte da qualificação, regulação, fiscalização, autuação e requalificação, bem como faz parte dessa cadeia o Sistema "S" (SESI/SESC/SEBRAE), médicos do trabalho, CEREST, etc . Nessa cadeia do labor no Brasil também entram órgãos instrucionais como a Fundacentro, o Ministério da Saúde no âmbito da prevenção, tratamento e reabilitação da saúde do trabalhador e os Ministérios das áreas comerciais como Agricultura, Indústria e Comércio, etc.
Ao INSS cabe a parte do amparo ao trabalhador no seu crepúsculo através das aposentadorias regulares ou em caso de acidente/doença no meio do caminho (benefícios por incapacidade) e alguns outros benefícios temporários. Porém o Estado Brasileiro é omisso nessa cadeia de co-responsabilização pois o Ministério do Trabalho não regula nada, não fiscaliza nada, o MEC é omisso, o MS-SUS é de uma incompetência ímpar, a Fundacentro é apenas um prédio bonito na Rua Capote Valente-SP, CEREST só emite atestado e CAT e a única peça que funciona nesse ciclo de omissões é justamente o INSS. Em resumo, o trabalhador é jogado aos leões e quando se estrepa acaba sendo resgatado pela autarquia previdenciária, que sem ter para onde correr acabou montando às suas expensas um serviço de reabilitação profissional que não deveria estar no INSS e sim no Ministério do Trabalho, MEC e Sistema "S".
Mas não é por ser a única peça que funciona que agora o INSS tem que assumir para si funções que não são suas, até porque a autarquia não sabe como exercê-las e acabará deixando de fazer o que já faz, mal e porcamente mas faz, e passará a ser concorrente na qualificação do trabalhador deixando sua missão institucional de lado. Ao propor isso, Carneiro confunde as atuações dos órgãos e não traz uma solução efetiva para o debate, pois sequer equipes estruturadas para esse fim o INSS possui, e nem possuirá, seria necessária a contratação de pelo menos 25.000 servidores entre paramédicos e técnicos para botar esse plano em ação.
Outro erro conceitual de Carneiro se diz ao binômio capacidade-incapacidade. O INSS avalia, por força de Lei Federal, a incapacidade laborativa por DOENÇA. Incapacidades de cunho social, econômica, emocional, técnica, biopsicosocial, não são consideradas na Lei. Além disso, ter CAPACIDADE de trabalhar não é antônimo de incapacidade. Ter capacidade significa, além do bem estar físico e mental, ter tido alguma formação, algum treinamento, prática, expertise em determinada função. Exemplo: Eu não estou incapaz por doença para trabalhar como eletricista, mas também não sou CAPAZ de trabalhar como eletricista pois não domino a técnica e nem fui instruído.
Existe um hiato entre a incapacidade e a capacidade e esse hiato se chama formação educacional. Logo, ao se propor a reabilitar um trabalhador, o INSS tem que se propor a formá-lo em uma outra profissão, dar uma nova QUALIFICAÇÃO. Reabilitar é qualificar. O INSS não tem dinheiro nem estrutura para isso até porque a maioria dos segurados sequer profissão tem, são ocupadores de cargos braçais. A única maneira de fazer um segurado sequelado ou com qualquer outra incapacidade por doença voltar ao mercado de trabalho é qualificá-lo profissionalmente. Logo, a reabilitação profissional, um dos pilares do projeto, depende de instrumentos e recursos humanos que o INSS não dispõe e não disporá. Reabilitar é muito mais que fornecer órteses ou mediar junto ao RH da empresa um reposicionamento do segurado em outro setor.
Carneiro fala em políticas de CAPACITAÇÃO do trabalhador dentro do setor que avalia a INCAPACIDADE por DOENÇA (perícia médica). Carneiro fala em reconhecer incapacidade de maneira geral, sendo que a Lei só abarca a incapacidade por doença. Ou Carneiro muda a Lei ou muda de cargo pois esse discurso é incompatível com a posição que ocupa. Desde sempre criticamos o nome de Diretoria de Saúde do Trabalhador, nome cutista imposto ao que seria a Diretoria de Perícia Médica. Aqui não se avalia Saúde, se avalia incapacidade por doença, é o que a Lei manda, e não o que queremos.
Os erros conceituais continuam ao tentar replicar no INSS a luta de classes existente hoje na área da Saúde que opõe médicos a paramédicos, estes últimos com discurso social, "humanitário", de desconstrução da medicina e do sequestro das prerrogativas médicas sob o manto do multiprofissionalismo quando na prática o objetivo é meramente financeiro e social ao almejar um status classista melhor. Dai vem o discurso de que "procedimentos simples" podem ser feitos por paramédicos (em resumo, procedimentos com baixo risco de dano ao paciente), de que o paramédico também pode "diagnosticar e propor terapêutica" (tentativa clara de controle da veia mestra da medicina para desconstruí-la) e agora de que "benefícios simples podem ser feitos por paramédicos". Além disso ataca a perícia médica como classe ao dizer que o modelo está esgotado e por isso não funciona.
Tal qual o SUS, não é de esgotamento que sofre o modelo. O modelo sofre de SUCATEAMENTO, MÀ GESTÃO e BOICOTE INTERNO. Por isso não funciona. Não se esgota aquilo que não foi explorado até o fim. O que vemos na carreira pericial é um boicote e um sucateamento ímpar que já causou quase 2 mil exonerações em menos de 3 anos. Fora a péssima infra-estrutura e a desordem de fluxo interno vigentes em 99% das APS.
Mais erros conceituais ao tentar definir a decisão sobre a incapacidade por doença como algo terrível, dificultoso ao extremo, quase uma tragédia, que não "pode ser carregada nas costas por um servidor só". Ora, colega, médicos estão acostumados a decisões muito mais difíceis e trabalhosas todos os dias, como a hora de entubar um doente, a hora de abrir a barriga de um paciente, a hora de iniciar uma quimioterapia, injetar sedativos poderosos em uma pessoa, como lembrou nosso colega Heltron. Como que a avaliação de incapacidade não pode ser feita somente pelos médicos?
Se um dia a lei mudar e o Estado passar a considerar incapacidade como multifatorial (social, econômico, emocional, psicológica, biopsicopseudosocial, doença, técnica) então concordarei que a avaliação terá que ser multiprofissional. Mas enquanto a avaliação for apenas por doença, sinto muito aos paramédicos, mas quem está habilitado a diagnosticar e propor condutas é o médico.
Por fim, o modelo em si: Já objeto de críticas neste blog, ele não conseguiu responder a perguntas básicas:
1) Se houver um derrame de laudos falsos, inclusive aqueles bizarros como câncer de ovário em homem ou cãncer de próstata em mulheres, quem vai devolver o dinheiro perdido e responder a PAD? O administrativo que cadastrou e que não é obrigado a ter conhecimento técnico? O chefe da APS? o SST? A DIRSAT? O presidente do INSS?
2) Se a equipe multiprofissional é tão importante assim e se a perícia é um fardo tão grande para o médico, porque que no Ax1, ou seja, após a concessão automática prévia, no momento mais difícil que é a entrada ou não do cidadão no sistema, o modelo dele prevê apenas perícia médica? Por que não coloca logo a equipe multiprofissional de cara no Ax1?
3) Se o objetivo é a reabilitação precoce, porque a equipe de reabilitação está no fim do organograma e não no início?
4) Como que seria a avaliação multiprofissional? Como seria a decisão final? Seria no par ou ímpar? Palitinho? Média ponderada? Joga pro alto o que cair primeiro? Soma simples? "Escolha a Carta"? Seriam várias votações até chegar num consenso, como se fosse um conclave?
5) E a parte em que os outros órgãos são envolvidos, eles estão sabendo disso?
6) Colocando mais pessoas em um processo decisório mais subjetivo, não vai lentificar ainda mais o processo?
Como se vê, tratam-se de sérias e complexas questões. Dr. Sérgio ficou quase 7 anos no MPOG e foi incapaz de conseguir algo simples, que seria os exames periódicos nos servidores federais. Como conseguirá então algo tão complexo? Enfim, a palestra do Dr. Sérgio Carneiro deixou várias dúvidas mas apenas uma certeza: Jamais dará certo.
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