sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

COMBATENDO A IGNORÂNCIA - "DOULAS INTERFEREM NA CONDUTA"

'Doulas interferem, sim, na conduta do obstetra', afirma leitor
08/02/2013 - 08h16 | da Folha.com

LEITOR MARCELO LUIS ABRAMIDES TORRES DE SÃO PAULO

Em 1853, a rainha Vitória deu à luz seu oitavo filho, Leopoldo, com a ajuda de um novo anestésico, o clorofórmio. Vitória ficou tão impressionada com o alívio que lhe deu da dor do parto que voltou a usá-lo em 1857, quando do nascimento da sua última filha, Beatriz, apesar de membros do clero terem se oposto por considerar que aquilo ia contra os ensinamentos da Bíblia: "E à mulher o Senhor Deus disse: 'Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos'. 

Também membros da classe médica se opuseram por acharem que poderiam haver riscos para a mãe e a criança. Não há discussão, portanto, que a dor é real.

Desde essa época a medicina evolui bastante e a analgesia que usamos atualmente mantém a consciência, a capacidade de fazer força e até se locomover durante o parto.

Apesar disso, ainda existem grupos que pregam que um parto humanizado deva ser muito pouco "medicalizado e, se possível, sem analgesia ou administração de soro" (nunca entendi a que soro se referem!).

Dizer que uma parturiente sob analgesia de parto e cuidados médicos está "presa a cama, dopada e incapacitada" --como diz o artigo "Das doulas como testemunhas", de Mariana de Mesquita) é um desconhecimento completo do que é feito em bons hospitais em nosso país.

A qualidade de analgesia que praticamos permite que a paciente faça força, ande e sinta o tato. Não a culpo, pois, como fazem questão de dizer, são leigas que acompanham uma parturiente. Mas a minha experiência de longos anos atuando na área de anestesia obstétrica mostra que as doulas, não raras vezes, interferem sim na conduta do obstetra, e que algumas vezes foi indicado por elas. 

Em ocasiões em que um feto passa a dar sinais de que o parto está impondo a ele algum grau de sofrimento (existem monitores que nos informam que a oxigenação está sendo prejudicada), elas com frequência discutem com a mãe e sugerem que devem esperar mais um pouco a evolução do parto normal para evitarem uma cesariana.

Eu me pergunto: com qual conhecimento da fisiologia do parto elas podem assumir tal responsabilidade? É muito fácil, pois não respondem judicialmente, são somente acompanhantes! 

Sem querer generalizar, existem doulas que assumem simplesmente o papel de acompanhante. Porém existem outras --já presenciei algumas vezes-- que oferecem até medicamentos em forma de gotas às pacientes durante o trabalho de parto.

Hoje os hospitais em que atuo buscam a qualidade através de várias organizações de acreditação hospitalar. Em todas essas organizações tudo o que é administrado a um paciente, em nome da segurança, deve ser prescrito em prontuário e validado pela farmácia da instituição.

Na instituição em que atuo também ocorreu o absurdo fato de uma doula retirar da paciente, por conta própria, um monitor da frequência cardíaca fetal para que o obstetra (seguindo um consenso na área médica) diagnosticasse uma bradicardia (muitas vezes sinal de falta de oxigênio ao feto) e pudesse indicar uma cesárea.

Como essas senhoras que deveriam ser somente acompanhantes têm essa atitude? O que há nessas gotinhas? Florais? Medicamentos homeopáticos? Sedativos? E se o feto nasce deprimido ou desenvolve uma lesão cerebral? Em prol de que isso foi feito? Para um parto normal a qualquer custo?

PARTO NORMAL 

Obviamente o número de cesáreas nos hospitais está excessivamente elevado, mas, nas maternidades em que atuo, existem suítes especiais para o acompanhamento do parto normal, com o intuito de estimular que ocorram em maior número.

Ainda assim temos na maternidade Pro Matre Paulista ao redor de 120 partos vaginais ao mês, sendo a quase totalidade deles sob analgesia. A incidência de cesarianas no grupo de pacientes que utiliza essas suítes de parto não ultrapassa 20%, incidência semelhante à de vários países desenvolvidos. Diga-se de passagem, a imensa maioria sem a presença da doula.

Quando vejo uma criança por portar "paralisia cerebral", doença em geral causada por oxigenação inadequada durante um trabalho de parto, tenho a certeza de que o ideal não é um parto vaginal e, sim, um parto com uma criança e mãe saudáveis.

A mortalidade materna é também inversamente proporcional a uma boa assistência obstétrica. Querer politizar o parto é, no mínimo, uma grande irresponsabilidade. Não existem condutas médicas de "esquerda ou de direita", as condutas são baseadas em evidências científicas.

VIOLÊNCIA 

Não posso deixar de comentar a absurda colocação de Mariana de Mesquita: a doula "presencia e identifica a violência silenciosa e covarde contra dois seres (mãe e bebê)". O que eu presencio são equipes de profissionais (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e tantos outros) que se preocupam continuamente em dar o melhor atendimento às pacientes.

Entretanto, se fizermos um exercício de futurologia, haverá um momento onde não existirão nem mais partos vaginais ou sob operação cesariana. Nosso tataranetos virão ao mundo num processo de fertilização "in vitro" e desenvolvimento da "gestação" em grandes laboratórios, fora do ventre materno. Isso será possível ainda nesse século. Provavelmente, nessa época deverá haver movimentos a favor da gestação no útero! 

Tenho três filhos que vieram ao mundo por parto vaginal, sob analgesia peridural e sem a presença de uma doula. Os trabalhos de parto de minha mulher foram acompanhados pela sua médica e por uma boa enfermeira obstétrica, com conhecimentos profundos da fisiologia da gestação e parturição. 

Marcelo Luis Abramides Torres é médico Coordenador da Equipe de Anestesia Obstétrica da Maternidade Pro Matre Paulista, professor doutor em Anestesiologia da Faculdade de Medicina da USP, responsável pelo Centro de Ensino e Treinamento para médicos em especialização da Sociedade Brasileira de Anestesiologia e secretário da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo

3 comentários:

  1. Quando falam em soro, referem-se à ocitocina.

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  2. Heltron, a par de parabenizar a postagem do artigo, me parece que o ditado correto seria: "Não há o que não haja!"

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  3. Sua habilidade de redação é fantástica.

    É ótimo que você use ela em defesa da medicina.

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