Tramita no Senado Federal projeto de lei que visa a obrigar (o termo é esse mesmo: obrigar) médicos formados em instituições públicas de ensino superior ou que tenham tido ajuda pública para se formar (leia-se Prouni) a ter que prestar até dois anos de trabalho FORÇADO para o Estado. Forçado pois será à revelia da vontade do cidadão (sim, médico também é um cidadão e tem direitos civis).
Para não caracterizar o que essa proposta na prática quer fazer, ou seja, escravizar o médico, o projeto de lei diz que o médico terá que trabalhar em "regime integral por 40h semanais" por até dois anos em locais periféricos onde existe notória falta de profissionais médicos.
Nada é dito sobre salário ou condições de trabalho. Chama a atenção que o projeto é só para médicos. Com certeza não deve ter falta de enfermeiros, psicólogos, advogados e engenheiros na periferia e no interior. Ou então, o PL sem querer comprova o que os paramédicos odeiam ouvir: Que o que a população quer mesmo é médico, médico e médico. Não querem "os outros".
Além disso, o projeto usa como justificativa a "necessidade social" (sempre ela) e a necessidade do médico "devolver à sociedade" o que foi investido "nele", esquecendo-se de que o médico e sua família pagaram impostos como todos os outros para, dentre outras coisas, poder frequentar universidades públicas e esquecendo-se também que o motivo da evasão médica nos chamados "rincões" é justamente a falta de estrutura, falta de segurança e salários irrisórios, nessa ordem.
Um projeto cínico que não aborda a má gestão da saúde, o verdadeiro roubo que ocorre nas verbas da saúde todo santo dia, a irresponsabilidade de prefeitos, secretários, governadores e da União que até hoje não montaram uma rede de serviços de saúde decente muito menos estruturaram o SUS e quer fingir que está resolvendo isso através de trabalhos forçados (esse é o melhor termo para o PL do Senador Paim e Senador Buarque) de médicos recém-formados que em tese deveriam estar em hospitais-escola fazendo residência e aprendendo medicina e não transformando a população pobre da periferia em cobaias de faculdades cuja qualidade média passa longe da excelência, inclusive muitas públicas.
Imagino o médico que usou o Prouni para se formar em uma faculdade privada tendo agora que se virar para pagar as mensalidades do empréstimo e sobreviver sendo forçado a trabalhar em área da qual não quer, não gosta e a preços irrisórios pois o PL dos senadores esqueceu de definir um teto salarial para esse tipo de trabalho.
Não resta dúvida que, à despeito de efusivos aplausos que esse projeto deverá receber nas comissões "sociais" do Senado, ele deverá ser vetado na CCJ ou se não ao menos será barrado na Câmara pois a instituição de trabalhos forçados no Brasil, com ou sem remuneração, foi extinta em 1888 com a Lei Áurea.
Além disso, o PL viola a Constituição Federal em seu artigo 5º, incisos XIII e XLVII e artigo 7º, pois haverá distinção ilícita e imoral e prejuízo ao médico formado em instituição pública em detrimento ao médico da inciiativa privada caso o primeiro seja forçado a passar período fora do mercado de trabalho para tapar o buraco de gestores incompetentes e políticos inconsequentes e que adoram fazer gentilezas com o chapéu alheio.
O médico já entra atrasado nesse mercado por sua longa formação. Se começarem agora a querer abusar ainda mais do nosso trabalho sem pagar o preço devido sob o pretexto "social" (usado na maioria dos casos para encobrir condutas improbas e atos de corrupção na administração pública) ai vai ficar inviável de vez ser médico no Brasil.
Na prática, os próprios gestores deverão se encarregar de boicotar e anular esse PL absurdo do Senado Federal: Imagina o pânico de ter quase 15.000 jovens médicos, revoltados com o trabalho forçado, questionadores e desafiadores (típico de jovens) sendo enviados aos grotões deste país e começando a ver, anotar, testemunhar e documentar nas redes sociais o caos da saúde, os postos sucateados, as políticas de saúde descumpridas, os desvios nas secretarias de saúde. Alguns mais exaltados poderão até mesmo descobrir uma veia política escondida e começar a rivalizar com os grupos locais. Médico dá muito voto.
Não, com certeza os prefeitos não irão querer esses médicos por perto. O que me revolta e deveria chamar a atenção dos colegas é ver esses pulhas travestidos de "grandes estadistas" querendo mais uma vez jogar a culpa do caos na saúde nas costas dos médicos e escravizar e distribuir o trabalho médico como commodity política pessoal.
Esses mesmos senadores são os que ao mesmo tempo que tentam nos vender como votos para sua platéia eleitoral, ficam nos bastidores tentando barrar o ato médico em votação no Senado com argumentos tão ou mais mentirosos e sofismáticos que os usados para conseguir aprovar o PL da escravidão médica, ou "exercício social" da medicina. O motivo da aparente contradição: evitar que os médicos tenham autonomia de sua profissão (ato médico) justamente para fazer a segunda parte: Vender os médicos para "uso" da população.
A nossa resposta é uma só senadores: NÃO. Enquanto ainda houver democracia nesse país, nenhum médico será obrigado a prestar serviço civil forçado.
124 anos depois do fim dos mercados de escravos no Brasil, os senadores Paulo Paim e Cristovam Buarque querem criar o mercado de médicos neste país.
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