Há alguns meses o Perito.med tem
levantado o tema sobre o Direito à Felicidade como forma de entender o
comportamento do cidadão moderno com repercussões em todas as áreas e,
inclusive, na Perícia Médica. O direito que tem sido parcialmente responsável
pelo surgimento de um cidadão com plenitude de “direitos” e poucos “deveres”.
Um cidadão que tolera investigar, denunciar, criticar e cobrar, mas não tolera
que se submeta a menor suspeita. Um
cidadão que insiste em receber, aproveitar, gozar e se divertir, mas não quer
que o estado pague o preço. Um cidadão “sempre sou, talvez faça”. Um cidadão
que prefere ficar em casa reclamando da vida de luzes não oferecida pelo seu governo
a ter que insistir em trabalhar, debater e tentar melhorar pelo esforço.
A classe médica não fica de fora
da discussão. Sim, os médicos, inclusive os médicos peritos, também querem ter
direito a felicidade. O fenômeno pode ser provado facilmente. É só observar a
quantidade de médicos que reclamam e a quantidade de médicos que fazem algo.
Por exemplo, o Sindicato Nacional dos Peritos costuma receber quase que
diariamente cobranças de pessoas que não tem coragem sequer de serem sócios. É
só experimentar marcar uma reunião para debater questões administrativas de
suma importância para exercer a profissão como condições de trabalho e observar
a módica presença. Os médicos infelizmente se especializaram, como os seus
pacientes, em querer e querer sem esforço árduo. Justo talvez, já que é uma
relação de troca, mas deveras doloroso principalmente para a parte mais fraca. O
paciente não tem o médico que precisa, mas o que merece. O médico não tem o
paciente que precisa, mas o que merece. A pedra desvia a água, mas se deforma.
Um dos maiores Prontos-Socorros doEstado do RN fechou nesta quinta. Faltam Pediatras? Ora, e que fim acha que
teria o fenômeno de esvaziamento das residências nos últimos 10 anos? Trabalho com
vários pediatras que deixaram ou diminuíram vertiginosamente as atividades,
fora e dentro da Perícia Médica. Obviamente não pode "vingança do direito à felicidade alheia". Auditores, médicos do trabalho, peritos do
INSS e empresários, a lista de ex-pediatras é grande. As várias respostas sobre
a insatisfação parecem traduzir uma única frase: “Não compensa trabalhar muito,
queremos ser felizes também!”. Sim cada vez mais a descoberta dos valores sobre
nutrição, qualidade de vida, família e valorização salarial. Da mesma forma a
revolta é unânime com a política governamental que impôs o destino fatal à
especialidade. As respostas mais comuns são: “Deus me livre atender sem
condições!”, “Deus me livre atender 150 crianças num plantão”, “Deus me livre
trabalhar e ganhar pouco!” e “Deus me livre atender telefonemas de pacientes de
madrugada e no domingo!”. “Emprego só se for leve”.
A coisa se complica quando se provoca
o colega médico. “Por que não se negou a trabalhar sem condições?”, “Por que não
participou da greve pelo aumento?”, “Por que não atendeu com autonomia?”, “Por que
não repreende quem te liga por besteira no domingo?”. A classe médica, da mesma
forma que seus pacientes, parece sempre ficar a esperar por: mudanças,
conquista e direitos sem esforço algum, com raras exceções. Absolutamente põem
a culpa exclusivamente no governo, sem olhar para o próprio umbigo. Este que realmente é o maior
culpa, não de todo. O resultado é que uma consulta hoje de pronto-socorro mais
parece um encontro de dois infelizes reclamantes. O direito a felicidade do cidadão
e do médico faz parte do mesmo fenômeno . Nenhum dos dois luta para mudar a
realidade e querem bons resultados. Felicidade vem depois de Dever, não somente
no dicionário.
2 comentários:
Brilhante texto, reflete com precisão cirúrgica o pano de fundo que move as relações pessoais hoje em dia.
O mesmo fenômeno se observa na Obstetrícia. Ou seja, aquelas áreas onde o "sacrifício" da vida pessoal é mais forte são as mais abandonadas.
Já estética, dermatologia, endocrinologia e outras áreas onde não existe a figura do "Plantão", estão hipertrofiadas.
Essa aberração em poucos anos irá gerar um colapso nos pronto-socorros pois os cirurgiões já estão indo pro mesmo caminho e a queda da bastilha se dará quando os clínicos seguirem eles.
"Entre nós brasileiros, a felicidade sempre esteve associada à alegria, à exuberância da natureza, à própria índole do povo propenso a sonhar e a fazer festas, a jogar futebol e a se divertir no carnaval. A questão social sempre foi adiada ou vista dissociada do tema. Era, e ainda é, como se o trabalho pertencesse a um mundo e a alegria a outro mundo. É como se aqui fosse o autêntico jardim do éden. Na prática, acontece totalmente o inverso.
A alegria brasileira tem se tornado cada vez mais triste porque as relações entre capital-trabalho-estado-sociedade são tensas a despeito do inexorável processo de inclusão social. O neoliberalismo entrou pesado na nossa cultura. Ceifou laços de lealdade, de fraternidade e cooperação. Colocou a concorrência em primeiro lugar, camuflou a solidariedade. Ser feliz é vencer individualmente. E onde fica o prazer da partilha? Onde fica o prazer coletivo de existir como sociedade? Onde fica a simples felicidade de caminhar nas ruas sem ser assaltado ou a simples liberdade de não precisar viver permanentemente com medo de ser tragado pela necessidade do trabalho? De ter uma justiça que funcione ou de conviver com uma economia política que responda aos anseios de uma sociedade justa e harmônica?
Nos acostumamos a viver infelizes, mas acreditamos que somos felizes. É uma tragédia de novo tipo: somos um povo infeliz e nos iludimos, pensamos que somos felizes. Simplesmente, porque perdemos as referências de felicidade. Ou, talvez, porque nunca pensamos concretamente em sermos felizes. Matamos no trânsito, nos emocionamos com o futebol, mas somos incapazes de nos mobilizarmos para defendermos uma representação política eficaz, um Congresso saudável e relações de trabalho amenas.
Para onde iremos caminhar? É difícil prever. A crítica do cotidiano encontra-se prisioneira do consumismo. A ideia dominante é: se existe consumo, há felicidade. Se o consumo diminui, a diminui também a perspectiva de felicidade. Gasta-se demasiada energia em festas, esportes e consumo. Pouco se discute o homem. Pouco se discute a vida. Certamente, ainda estamos ancorados no tempo de Casa Grande e Senzala, vendo a felicidade como uma qualidade naturalmente brasileira, naturalmente imanente à nossa realidade. Acreditamos no brasileiro sexualmente feliz, no brasileiro cordial e naturalmente caloroso, receptivo ao contato com o outro, mas esquecemos que a felicidade começa na mudança das relações entre o sistema produtivo e o trabalho. E que é nesse aspecto que começa a felicidade.
Não se trata apenas de uma questão de lei - o que é positivo, sem dúvida -, mas da cultura social de uma nação. Contudo, é valido, e construtivo, que o tema passe a fazer parte do nosso cotidiano. Fica, porém, a pergunta: pode existir felicidade sem que o coletivo seja levado em consideração primeira? Evidentemente, não. Um ou outro indivíduo pode ser feliz, um ou outro momento pode ser de felicidade. Mas a felicidade como alicerce da nossa vida começa e termina pela felicidade social. Se esta for inexistente ou flácida, o mesmo acontecerá com o sentimento de felicidade.
Portanto, o direito a felicidade, antes de ser uma lei, é uma prática. O homem, como assinalava Karl Marx, é um ser político, não somente um animal social. É um ser que só na sociedade pode se individualizar. Em outras palavras, sem coletividade feliz, a felicidade, por mais que esteja garantida em lei, não passará de mera ficção. E de leis que existem para não se transformarem em realidade concreta, vale lembrar, estamos cansados. Felicidade é mais do que uma palavra. É uma gramática social inteira."
Francisco Viana é jornalista, mestre em filosofia política pela PUC-SP.
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