A charge acima publicada na Folha de São Paulo de 21/07/2012 reflete bem que o atual modelo de financiamento da medicina no país está falido e precisa ser revisto com urgência.
Durante o período pré-republicano a medicina era coisa de rico e quem praticava medicina eram filhos de nobres ou próximos aos nobres, mas estava ausente na estrutura de poder oficial do Estado Nação. As primeiras faculdades vieram com a chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808 e eram eventos tão solenes que o próprio Rei inaugurava essas faculdades.
Os pobres ficavam com os curandeiros e com cuidadores, notoriamente ligados à Igreja Católica que por ser milenar e estruturada conseguia montar as "santas casas" para atender à população necessitada. Muitos morriam sem assistência alguma.
Com a republicanização do país começou a ter uma onda de demandas sociais por acesso a médicos e a seu saber. Leis sobre exercício da medicina no Brasil começaram a ser escritas na década de 30, seguindo padrão internacional de definir que a medicina ocidental seria de determinada forma e regra (venceu a corrente alopata e fisiopatologista).
Após o Estado Novo começa-se a formalização do trabalho no país. Organizado, essas classes trabalhadoras montam institutos de saúde e previdência para garantir seu bem estar social. Cada classe (comerciários, industriais, bancários, etc) tinha seu instituto de "saúde e previdência" (IAPAS, IAPI, etc etc) cada um com seus respectivos hospitais. Nessa época, ter emprego era a garantia de ter acesso a grandes hospitais, a maioria bancada com dinheiro público, e a grandes médicos. Era a época onde hospital público era sinônimo de bom. Foram nesses hospitais, por exemplo, que nasceu a residência médica no Brasil (HSE-RJ e HC-USP em 1942)
Junto com eles vieram os hospitais universitários, antes mais fechados e depois mais abertos ao povo. À população que não era rica nem assalariada restavam as mesmas santas casas e alguns pronto-socorros ou eventualmente alguma sorte de cair em um HU da vida.
A demanda foi crescendo e na década de 50 criam-se os conselhos de medicina e na década de 60 e 70 começam-se a organizar carreiras públicas de médicos. Mas como nunca foi interesse dos governos gastar muito com isso, as verbas eram poucas e os médicos, poucos. As carreiras eram apenas para garantir vagas, nunca foram carreiras de fato.
Vem o regime militar que manteve parte desse status quo unindo os institutos previdenciários e de saúde sob a sigla INAMPS, mas que era exclusivo dos assalariados. Em sua transição para a democracia ocorreu o grande salto para a expandir a democracia também para a área da saúde. O discurso forma uma geração de médicos que através de movimentos como a Renovação Médica e a Reforma Sanitária varreram do país o modelo antigo de medicina (elitista e catedrática) e começaram a implementar a estatização da medicina como forma de universalização da mesma e de alcance da democracia ou de outras ideologias.
Isso se dá de fato com a VIII Conferência Nacional de Saúde, a primeira e única que realmente foi democrática e teve representatividade popular, que em 1986 definiu as bases do SUS e de quebra determinou a cisão dos institutos previdenciários (então já reunidos sob a sigla de INAMPS) e de saúde.
Num curto período de transição e no início da década de 90 temos a implantação do SUS em rede nacional sob a direção do Ministério da Saúde , que até então era um mero escritório em Brasília, e a fundação do INSS como o braço previdenciário do INAMPS. Toda a estrutura física do INAMPS ou foi cedida ao Ministério da Saúde ou ficou parada por décadas nas mãos do INSS. Os grandes hospitais públicos foram universalizados e desmontados em sua estrutura humana e iniciaram uma longa e contínua decadência pois o Ministério da Saúde não tinha verba nem a expertise em gerenciar isso em escala nacional.
A necessidade de rapidamente cobrir o território nacional com médicos versus o custo e a total falta de estrutura no país fez com que se criasse a cultura do improviso: pagava-se pouco mas também exigia-se pouco. O médico era estimulado a ter vários vínculos para conseguir uma renda minimamente decente, até porque não se podia exigir muito do médico já que a estrutura não existia e a população estava satisfeita de poder ver um médico, mesmo que levasse dias.
Paralelamente se montava no país uma rede de planos de saúde que ofertaria esses médicos a módicos preços. O médico se credenciava pois teria seu consultório lotado pelo plano que em troca pagaria "menos" por consulta. Parecia uma boa idéia.
Durante 30 anos essa cultura virou um câncer, ou "a lei de Vampeta": O Estado fingia que pagava e os profissionais fingiam que trabalhavam (as horas contratadas), com a anuência do Estado diga-se de passagem. Os planos de saúde passaram a dominar um grande mercado e após disso conquistado começaram a arrochar o salário do médico que era chantageado com a esmola ou a rua (e o esvaziamento do consultório). O Estado, tão defendido pelos médicos reformistas, traiu a eles e a toda a classe ao querer impor seu padrão de mais valia na medicina realizando uma verdadeira expropriação de recursos humanos e financeiros e pressionando a população a aceitar essa situação, sempre culpando os médicos pelos erros.
Mas a situação mudou. A era da mídia e o acesso da população à informação mais ampla e irrestrita tornou a sociedade mais exigente. Os médicos se viram numa encruzilhada pois estavam reféns de um esquema montado pelo Estado de subfaturamento compensado com "alívio na carga horária" e reféns do poder de consumo dos planos de saúde, e agora prensados pela sociedade que exigia tratamento de primeira, tratamento esse que não era possível pelo subfinanciamento da saúde no país.
Como tratar com qualidade 120 pessoas em 12 horas? Se for fazer o exame físico necessário o médico era linchado ou preso pela "demora" e se tratasse apenas sintomas sem investigar era linchado e preso pelo "erro médico" e isso a preços cada vez mais ridículos, que é um bom termo para definir o salário do médico pago pelo Estado.
Além disso, uma nova geração de médicos nascida nessa mesma sociedade mais exigente passou a REFUTAR hábitos do passado em querer aceitar "qualquer emprego público" como um "bico" e não aceita mais ganhar esmola de plano, se arriscando no impensável mercado privado sem amarras ou até mesmo e outras profissões. E passou a querer fugir da armadilha do parágrafo anterior.
O resultado dessa equação maligna é que a pressão (e o tamanho) da sociedade cresceram ao mesmo tempo que os médicos passaram a sair dos hospitais públicos e de convênios pela não remuneração digna e pela falta de condições de trabalho. Ora, mais pessoas que são mais exigentes e menos médicos é igual a colapso no atendimento, muito bem retratado pelo cartunista acima.
Não é que falta médico, como equivocadamente um colunista da Folha disse meses atrás e foi rebatido por este BLOG. Faltam sim, médicos dispostos a receber salário de fome do governo e de algumas operadoras de saúde. Como a maior parte da população depende do SUS ou dessas operadoras, a crise está instalada.
Se foi possível no passado, por causa da expansão rápida, colocar vários médicos em vários locais pagando pouco por isso e deixando o médico se esfolar para ganhar bem na soma de tudo, hoje em dia esse modelo está falido e precisa ser revisto: Os médicos querem ganhar BEM e ficar em poucos vínculos. A mesma pressão por qualidade que emana da sociedade emana dos médicos formados nos últimos 20 anos.
E o Governo, mostrando que a traição aos médicos antigos ainda não havia acabado, tentou uma facada de morte recentemente com a MPV 568, mas a pressão dos médicos o fez recuar.
O modelo de subfinanciar o médico não é mais possível no mundo atual. A sociedade quer e exige médicos presentes e dedicados ao serviço. Para isso, tem que se pagar BEM e dar estrutura para o médico exercer toda a sua autonomia que a profissão exige.
Ou o Governo entende isso e monta carreiras públicas de médicos (incluo os peritos) nos moldes das carreiras jurídicas, respeitando as peculiaridades da medicina, ou a crise só irá agravar. Mesmo que venham os cubanos, venezuelanos e bolivianos como sonha o PT, a sociedade refutará e poderá cobrar do governo nas urnas.
Está na hora de mudar paradigmas. Qualidade, eficiência e produtividade têm seu preço, que não é apenas um salário digno, é estrutura, autonomia e o fim da interferência política na organização médica pública, esse sim um dos piores efeitos da estatização da medicina no Brasil.
O Governo Dilma terá a coragem necessária para isso ou será o mais do mesmo?
3 comentários:
Os planos de saúde iniciaram no Brasil na década de 50, era 1957,1958 quando surgiram os primeiros embriões em SP! Com a vinda das Montadoras no grande ABC e sem um serviço medico que pudesse atender a estes trabalhadores e "a produção de carros não pode parar", começaram a se organizar para suprir uma lacuna do estado!
Sabiam qe durante a década de 70 muitos destes planos usaram dinheiro publico para se estabilizar no Mercado? Que apenas em 1980,81 é que o Governo cortou? Que durante algum tempo, ate 1992, eles ate remuneravam com certa decência?
Hoje em dia o plano credencia 1 medico para cada 400 usuários?
Vou apenas mostrar uma conta que ninguem se atenta em fazer:
Se o usuário de plano de saúde faz em media 5,2 consultas. Num grupo de mil seriam 5200 consultas / ano, 433 consultas mes, 20 consultas dia! Ora, se vc tiver 2 medicos por 1000 já cai pra 10 consultas dia... Então 500 pessoas pagantes é suficiente para gerar receita e pagar vencimentos ao medico atendendo 10 consultas dia?
Em media para cada grupo de 1000, cerca de 30 vão se internar...é só fazer as contas!
Esse negocio de 2 ou 3 medicos para cada grupo de 1000 é falácia! Não é viável do ponto de vista medico e é utilizado apenas para aumentar a oferta de mao de obra e por critérios de livre concorrência e mercadologico, "Baratear o custo " da mao de obra!
O Brasil ta entre os primeiros em numero de medicos frente a população! Aqui tem mais escola que na Índia...vê a população de lá...
O que tem aqui é muita falácia e hipocrisia e sejamOs sinceros: por muito tempo os Respresentantes dos medicos ao viam o seus umbigos! Só passaram a querer agir quando suas clinicas privadas também estavam sendo atacadas pelo Mercado! Agora é tarde...
E os médicos, em sua maioria, não querem um único bom emprego. A maioria defende o "direito" a vários empreguinhos; acham que isso lhes dá segurança e importância. Já introjetaram o discurso do estado, tão bem descrito pelo Francisco.
Texto antológico, parabéns Chico!
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