Tudo bem que o Juiz alegue que os médicos em municípios distantes dos grandes centros com grandes hospitais não poderão deixar de prestar, quiçá, eventualmente, assistência a partos domiciliares e não poderão, nestes casos, serem taxados de antiéticos.
Mas, em quê medida esta decisão não contribui para deixar os gestores e prefeitos destas regiões mais pobres em uma zona de conforto por tempo prolongado, sentados sobre a conveniência de nada fazer para mudar a situação, e assim ajudar a promover, com esta sentença, a desigualdade social e regional no Brasil, aprofundando ainda mais o fosso da mesma?Se a decisão fosse contrária, forçaria o gestor a se mexer para resolver a situação.Mas, de qualquer jeito, acho que estes casos são tão excepcionais de acontecerem que o Juiz não deveria ter generalizado sua decisão em hipótese tão rara e remota.Até mesmo aqui no Acre onde moro nas cidades pequenas tem unidade mista onde tem equipe de saúde, incluindo médico, que pode fazer o parto.
Os partos na zona rural nos domicílios só acontecem quando a gestante não quis se programar para vir ao hospital e quando não faz pré-natal adequadamente para que o direito à informação sobre a saúde e sobre os tipos e locais de parto e suas consequências sejam-lhe ofertados.A hipótese de haver uma programação de parto domiciliar em comunidades distantes dos grandes centros é quase impossível - para não dizer impossível.
E esta decisão do Juiz reforça, ao meu ver, o comportamento retrógrado desta população de ficar distante do hospital mais próximo, acreditando enganosamente que terá mesmas chances de sucesso ou de complicações que teria uma outra gestante amparada pelo Estado a ter parto em uma unidade de saúde com uma equipe de saúde, mantendo esta parturiente na mesma situação de maléfico conforto do far niente do Estado, estimulando que fique em sua casa para o parto, ou senão, deixando de estimular e de informar que o parto mais seguro é o hospitalar e que nenhum parto é 100% seguro.
O Estado não tem o direito de retirar o direito à saúde com as melhores chances possíveis de sucesso todos indistintamente.Portanto, é dever do Estado programar o parto desta gestante em uma unidade hospitalar, quando agentes comunitários de saúde verificarem que mora em local distante de um hospital.Cabe ao Estado trazê-la e custear seu transporte até este hospital.Será que este Juiz, se morasse numa comunidade longínqua, mas, entretanto, tivesse conhecimento e informação suficientes para discernir que as chances de sucesso e os cuidados oferecidos a uma gestante em ambiente hospitalar, mesmo que não seja um grande hospital, seriam imensamente maiores e melhores, ele preferiria que sua esposa tivesse seu filho naquelas condições?
Por outro lado, deixo claro que não li nem a resolução do CRM-RJ nem a sentença do magistrado, mas acho que o CRM não tem atribuição de proibir atuação de doulas, enfermeiras e parteiras.Isto é problemas delas, não está na seara dos CRMs.
E mais, acho que os CRMs não deveriam proibir médicos de fazer partos onde quisessem, até mesmo na lua ou em outro planeta.Porém, todos os médicos deveriam ser obrigados (e aí sim com ameaça de infração ética) a sempre proceder a assinatura de termo de consentimento esclarecido no qual a parturiente assinará após leitura ou ciência dos riscos e complicações do parto domiciliar, ao mesmo tempo em que deverá ter ciência dos riscos e benefícios do parto hospitalar.
E deve estar ciente de que as possíveis complicações e sequelas do parto domiciliar, mesmo que aconteçam em ambiente hospitalar a posteriori (quando for levada depois que tudo der errado na tentativa malograda do parto domiciliar), serão única e exclusivamente de responsabilidade do ente público e gestor, que se esquivou de oferecer-lhe as melhores condições que hoje em dia a ciência oferece para este tipo de evento, se ela tiver, por livre e espontâneo consentimento, após esclarecimento, optado pelo parto hospitalar, sem que o ente público tenha tido condições de provê-lo.O problema é o julgamento do limite desta responsabilidade do ponto do vista jurídico, já que não existe ponto pacífico jurisprudencial que a exima com ampla e irrefutável garantia.
Por outro lado, se a escolha da gestante/parturiente for conscientemente tomada pelo parto domiciliar, após ser esclarecida de todos possíveis riscos e benefícios do ato, então que assine o termo de consentimento e limite a responsabilidade do médico de forma que fique restrita apenas aos meios que poderiam ser utilizados pelo mesmo naquele ambiente limitado da amplitude de recursos que a ciência hoje pode oferecer.
Será que este mesmo magistrado será indulgente com este médico se houver um insucesso no parto domiciliar e quiserem atribuir a responsabilidade subjetivamente ao doutor médico? Quantos enfermeiros respondem a processo profissional por conta disto? Médicos deve ter aos montes e não é à toa que o Cremerj deve ter tomado esta atitude.Mas, como você cometeu este erro, doutor, parto é uma coisa tão simples? - diriam facilmente os incautos e incultos em relação ao funcionamento do transcorrer de um trabalho de parto depois da desgraça consumada; que é algo muito complexo, envolve muitas variáveis e nem todas sobre o controle da natureza ou da sorte ou da possibilidade de ação de um médico em condições precárias de atendimento, sem dispor dos modernos aparatos que a tecnologia oferece.Sem exagerar tanto, não é o caso também de ter tantos aparatos de ultra tecnologia, mas a opção de uma cesárea de emergência tem que ter sempre, e a nenhuma parturiente deve ser negado este direito.Isto sim acho que é um crime de lesa-saúde.
Qual opção vocês acreditam que uma gestante bem informada vai escolher?O problema é que se aproveitam da ignorância e da pobreza do povo.Ao meu ver esta decisão do magistrado acentua a perpetuação da pobreza, da ignorância e do tratamento desigual no sentido de ofertar direitos de saúde a quem está em situação mais desfavorável sob todos os sentidos, contribuindo para agravar este fosso ainda mais.
O termo de consentimento esclarecido bastaria para dar cabo à discussão sobre partos domiciliares?Cada médico tem a autonomia de decidir se faz ou não, assim como à parturiente deve ser dado o direito à todas as informações sobre as modalidades dos diferentes partos a fim de que, após seu esclarecimento e ponderação, decida também livre e autonomamente sobre qual escolha deve fazer.
Eu, particularmente, jamais faria parto domiciliar, a não ser que fosse pela única razão de evitar uma omissão de socorro.Mas, mesmo neste excepcional caso, eu já teria levado ao conhecimento das autoridades acerca das péssimas condições de trabalho em qualquer local que, por qualquer razão, obstruisse o acesso da parturiente às melhores condições de parto em termos de segurança.Mas....cada um é que sabe o quanto o próprio rabo aperta, e não posso decidir por outros colegas.Temos que respeitar a autonomia de cada um se, desafortunadamente, em última instância a decisão judicial não puder ser revertida.
Acho que tem muita gente sem noção do risco que corre nesta aventura.E o pior de tudo é que não estão apenas no bojo da parcela da população mais hipossuficiente, desamparada e ignorante.Parece que há médicos também!!Ou não têm noção ou estão aceitando um risco muito alto por um preço muito baixo - na verdade, um preço aviltante e imponderável, impagável: o preço da vida e dos seus diplomas.