Outro dia discutia com alguns colegas que,
considerando o assustador cenário nacional, o profissional médico hoje seria tão ético quanto
a sua capacidade de dizer convictamente a palavra “não”. Não que nós gostemos, claro, mas é que praticamente tornaram o exercício da
medicina inviável sem este advérbio de negação. Obviamente que previ que em alguns anos ele seria tema de uma disciplina aula de medicina: "Negativologia Clínica". Aí ouvi a
piadinha de graça: “Então vocês do INSS são muito evoluídos! Negam tudo!”. E não adiantou dizer que aproximadamente 80% dos requerimentos são deferidos – o Não
é o que tatua a alma.
Outro dia um colega anestesista
suspendeu um procedimento plástico porque o paciente havia tomado café e, após
explicar sobre os riscos eventuais, escutou do paciente: “Olha aqui! O Senhor está sendo muito radical! Paguei R$12.000 já e Eu
não saio daqui sem ser operado.E mais vou lhe processar!” (ser processo por querer ajudar alguém é um dos efeitos colaterais da ética). É isso. Parece que o exercício da medicina, com cuidado e responsabilidade, está cada vez mais diretamente ligado a
capacidade do profissional médico dizer um “não” bem dado. Estes dias alguns colegas colocarão
nos currículos “Pós-Graduação, Mestrado, Doutorado em Negativoterapia (com letras miúdas)”.Vai ser marketing de sucesso o doutor que se garante no monossílabo.
“Não atendo sem prontuário, sem
caneta, sem papel, sem água, sem ar-condicionado e também sem cafezinho quente (afinal ninguém é de
ferro)”. “Não atendo encaminhamento de vereador, fora da agenda, sem lenço, sem documento e sem comprovante”. “Não interno
nem carimbo controlado e nem dou atestado sem examinar”. "Não recebo fiado nem aceito escambo e nem cantada pra desconto". “Não opero sem fios de
sutura, sem foco, sem UTI e sem auxiliar”. “Não
trabalho sem cadeira, armário, ambulância, papel higiênico e sem porta no banheiro". “Não como munguzá com sal e nem macarrão com ovo pela quinta vez na semana”. "Estão aí as condições"... Infelizmente a Medicina é a arte
de trabalhar o seu não de cada dia sem se estressar. É a arte de ser chato e ainda assim
conseguir pagar as contas no fim do mês.
“Mas como assim o Senhor não vai
passar nada?” disse. “Não precisa pode ir” disse o médico seguro. “Tome Ginkgo Biloba”
disse o que tem medo de desagradar. “Tome este antibiótico caríssimo e volte em 2
dias com esta ressonância, mas saiba que vai dar normal. Fique tranquilo!” disse o colega “Estraga
tudo” prevendo o óbvio. É exatamente assim. Mas o "Não" não pode ser de qualquer forma. Para dizer um não é preciso, antes de tudo, ter muito estudo, disciplina e coragem. As negativas
na medicina sempre pesaram mais que as afirmativas. Dizer que morreu é mais pesado; Talvez por isso todas as
auditorias do INSS ratificam uma após a outra que os laudos de indeferimento
são muito mais completos e adequados as “normas”.
Infelizmente os médicos têm sido empurrados
para uma encruzilhada onde são obrigados a escolherem se querem seguir éticos
em seus preceitos, porém estressados por overdose de chatice ou nos limites da ética sorridentes, tranquilos e, claro, com gordurosas produções no fim do mês. O mais curioso é que absolutamente ninguém respeita mais uma decisão em forma de “não”: paciente,
acompanhantes, não-médicos, gestores, autoridades e até a mãe do perito (esta
foi para um colega que levou sermão da própria mãe para autoriza mais
benefícios). Deveria haver uma campanha: “Doutor aprenda a dizer não” ou "Não faz bem a saúde" ou “Mil e uma formas de dizer e ouvir um não sem se
machucar”.
No fim o corpo médico do Brasil está doente engasgado com uma
palavra de três letrinhas quando Peritos, médicos do trabalho e assistentes estão
todos incapacitados. Incapazes de dar um “Não” que salvaria a si mesmo, o seu
paciente e própria sociedade. E não esqueça: "A sociedade tem o médico que merece, não o que precisa."
Um comentário:
Eu não me sinto orgulhoso, mas como médico plantonista eu digo "não" muito mais vezes do que eu gostaria.
Acabo sendo um chato.
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