quinta-feira, 3 de maio de 2012

NO FUNDO A CULPA É DO MÉDICO. E É MESMO.

Ontem devolvi um processo de pensão para filho maior inválido para que fosse refeito. Motivo: o perito periciou o recorrente em uma folha impressa do sistema PRISMA onde o examinado consta como sendo o falecido instituidor da pensão. É assim que o PRISMA faz, mas o perito não teve o cuidado de retificar o erro sistêmico em seu laudo manuscrito cujo cabeçalho é impresso errado. O "normal" seria fazer vistas grossas e tocar o barco. Afinal, o médico é um quebra-galho, um profissional "social" incumbido de viabilizar o inviável. O perito médico tem relação médico-paciente atípica, uma vez que não atua no melhor interesse do paciente, mas na busca da verdade e do direito. Mesmo assim, trazemos para o INSS os vícios da prática médica, nos esquecendo do papel médico-legal que desempenhamos. Sobre isso, vejamos o que diz um magistrado em reunião com o CRM:


"No e-mail anterior, creio ter deixado claro que os juízes, corretamente, julgam avaliando as condutas médicas à luz das regras técnicas e éticas que foram definidas pela corporação médica.

Assim, a condenação e as penas só podem ser resultantes de condutas individuais e/ou coletivas, caracterizáveis como imprudentes, imperitas ou negligentes.

Vejamos como isso acontece.

Partamos do princípio de que todo médico deve ter ciência certa das normas contidas no Código de Ética Médica.

O postulado é falso já que em nenhuma faculdade de medicina o Código é estudado devidamente e em profundidade. Deveria sê-lo já que ele é a 'bíblia' do médico, o conjunto de regras de conduta que quando desrespeitadas, podem 'extinguir' o profissional nos casos extremos. Nenhum outro código possui esse poder.

Na esfera penal, o médico é condenado à prisão. Cumprida a sentença, volta a ser médico. Na área cível a condena implica em perdas patrimoniais, que poderão ser repostas sem incidência sobre a continuidade do exercício profissional. Quando no setor administrativo, o médico poderá até ser demitido, mas sempre encontrará outro lugar para trabalhar. Entretanto, na área ética, o médico condenado perde o título e NUNCA mais voltará a tê-lo. E com toda razão, já que nesta esfera julga-se o caráter do indivíduo e esse, não muda. O sujeito mau-caráter, sempre o será. Não tem cura.

Pois apesar desse enorme risco, as universidades omitem o estudo do Código de Ética e o formado sai com ideias distorcidas e sem sequer o ter lido integralmente.

Esse o grande complicador já que para a justiça, o conhecimento das normas e regras do Código de Ética Médica pelo profissional é um pressuposto e assim sendo, não adianta alegar desconhecimento dele e nem das demais regras previstas na legislação, eis que vige princípio constitucional que inviabiliza alegar desinformação das leis para elidir culpa por atos ou fatos provocadores de dano.

Qual a desculpa mais utilizada para 'justificar' condutas médicas provocadoras de danos por imperícia, imprudência ou negligência?

Sem dúvida aquela que o médico afirma ter acontecido por falta de condições de trabalho. Todavia, nenhuma prova há deste mesmo médico ter adotado as cautelas dispostas no Código de Ética Médica, tais como a comunicação dessa falta de condições a seus superiores hierárquicos e especificamente ao Diretor Técnico da Unidade e aos Conselhos de Medicina.

Ademais, com honrosas exceções, pelo menos aqui no estado, o Diretor Clínico é figura decorativa que se limita a elaborar uma escala de plantões. Não se vê convocações pela Direção Clínica de reuniões de corpo clínico para avaliar o que foi feito durante a semana, os resultados obtidos com os diversos medicamentos utilizados, ou com os protocolos e rotinas de atendimento. Médicos e diretores parece entendem que isso é perda de tempo, esquecendo que é graças a essas trocas de informação que a medicina evolui.

Todo médico sabe que trabalhar com instrumental inadequado é risco puro, mas mesmo sabendo, não se insurge e nem cobra do Diretor Técnico condições de trabalho. Tampouco deixa registro desses fatos nos prontuários ou em documentos específicos.

Pois essa omissão do médico na cobrança de condições de trabalho configura sua cumplicidade com o gestor e tipifica um ato negligente.

Reitero, não adianta depois do leite derramado, dizer que derramou porque o vasilhame estava rachado, ou sem tampa. Aqui deve existir prova escrita das cobranças. Ausente essa prova, a culpa exclusiva é do médico e isso está previsto no Código de Ética Médica e na legislação vigente.

Dissemos antes que o Decreto 20.931/1932 determina que toda unidade de saúde tenha um responsável técnico que deve ser médico. A maioria não os tem. Por sua vez, os Conselhos de Medicina não o exige administrativa ou judicialmente e assim sendo, por essa omissão em sua função de fiscalização os CRMs podem ser responsabilizados.

Ausente o Diretor Técnico - responsável pelo suprimento de condições de trabalho para os médicos -, a quem reclamar da falta de meios e recursos?

Como fazer entender a um burocrata não médico que diversos instrumentos e elementos auxiliares de diagnósticos são imprescindíveis para e exercício médico e o bom atendimento?

O Código de Ética Médica e farto em disposições que explicitam esse direito e obrigação do médico:

Nos Princípios Fundamentais VIII/XIV/XV e XVI;

Nos Direitos do Médico: III/ V e VIII;

Nas definições de faltas éticas: art. 10/ 19/ 20/ 25/ 28, par. Único/ 57 e 87.

Outra desculpa rotineira justifica condutas negligentes e imprudentes alegando que não dá tempo para atender todos os pacientes.

E onde está escrito que o médico tem de atender seus pacientes 'correndo'?

Pelo contrário, o Código de Ética Médica DETERMINA que a saúde do paciente deva ser alvo de toda a atenção do médico e que por isso tem de agir com o MÁXIMO de zelo e o melhor de sua capacidade profissional (Princípios Fundamentais, II).

Tampouco pode o médico, em nenhuma circunstância ou sob pretexto algum, renunciar à sua liberdade profissional e nem permitir restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e correção de seu trabalho (Princípio VIII).

Menos ainda aceitar qualquer tipo de imposição que limite a escolha pelo médico dos meios e recursos cientificamente reconhecidos para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento (Princípio XVI).

No art.20, o Código VEDA aos médicos permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, de seu empregador, superior hierárquico, ou financiador público ou privado INTERFIRAM na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos.

O art. 32, veda ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento em favor do paciente.

O art. 34 proíbe deixar de informar o paciente sobre o diagnóstico, prognóstico, riscos e objetivos do tratamento.

O art. 37 define como falta ética a prescrição de tratamento ou a realização de procedimentos, SEM O EXAME DIRETO do paciente.

O art. 87 exige a elaboração de prontuário LEGÍVEL, onde fique registro dos dados clínicos necessários para a boa condução do caso, preenchido EM CADA AVALIAÇÃO, em ordem cronológica, com data e HORA.

Estes últimos artigos nos remetem às constantes cobranças dos pacientes a respeito de o médico não olhar e nem examinar, quanto menos ouvir. Acusação que somente cai por terra quando existem documentos escritos que as refutam.

E não adianta dizer que foi impedido de atuar da forma disposta no Código, já que se isso acontece, o médico deve denunciar essa limitação e qualquer ato que contrarie princípios ou condutas éticas à Comissão de Ética Médica e ao CRM.

Portanto, com essa base legal, como pode o médico permitir-se atuações que somente visam a resolver o sintoma unicamente?

O que pode justificar tais negligencia e imprudência?

Como reclamar de um juiz que te condena se você tornou-se cúmplice de um gestor preocupado com números e com atendimentos 'rápidos' que eliminem as filas?

Estou careca de falar que o problema das filas é do gestor. O médico tem obrigação de oferecer a seu paciente, QUALIDADE!

Médico que se presta a resolver o problema do gestor e atender medicando sintoma, certamente mais cedo ou tarde enfrentará processos e ações indenizatórias e nessa hora não vai adiantar alegar 'pressão' do gestor porque o gestor, como sempre ocorre, vai negar e afirmar que o responsável pelo dano é você, no que terá absoluta razão. Afinal, é você, médico, que tem autonomia no exercício de seu mister.

Se você não tem coragem para exercer essa autonomia, então é melhor buscar outra atividade... ou aguardar que o sistema te quebre completamente e que teu diploma seja cassado. Você decide!

Acho que temos bastante assunto para debater. Estou às suas ordens!"


Crédito: Miguel Angel Suarez

8 comentários:

Francisco Cardoso disse...

Fantástica reflexão. É isso mesmo.

Francisco Cardoso disse...

Fantástica reflexão. É isso mesmo.

Snowden disse...

Nao ha um so culpado!
O decreto 1172 fica onde?
A constituicao federal, art 129?
E varios outros pontos...MTE, Deputados, Gestores, Governantes, Senadores...
H'a varios atores no erro! Por que entao teria que partir dos medicos o onus do erro?

Seria muito simplorio a equaçao, nao fosse as questoes relacionadas a sobrevivencia!
Conduta 100% correta? Onde? Adaptacao pra sobreviver? Quase sempre!
É fácil enumerar dezenas de erros, dai surgem as contravencoes, os crimes "menores" e os maiores, que atacam a honra. Pequenos delitos? Faz parte do jogo?
A questao é combinar: vamos todos fazer o que é certo! Mas combinar, envolve lados, ou não é?!O médico combinou o que, com quem? o Gestor combinou o que, com quem? O MTE? O MPU? O Senado? Os Deputados Federais? A líder? E o principal de tudo: A MERITOCRACIA!
Não é facil! Ufa!

Eduardo Henrique Almeida disse...

Certo Aldo. Sua análise é mais abrangente e corretíssima. O texto é apenas para destacar os vícios crônicos de nossa categoria. É claro que tudo tem causas e o médico está inserido em um sistema que viabiliza e estimula sua conduta profissional.
Como somos elite intelectual, deveríamos, nós, ser os protagonistas da mudança. Entretanto o tumor está invadindo planos profundos e muito disseminado.

Eduardo Henrique Almeida disse...

Muitos médicos, a maioria, não sabem as implicações éticas e jurídicas de seus atos. Basta ver os atestados médicos que elaboram e assinam!
Médicos são parte da elite intelectual, estão entre os QI mais altos da sociedade. Estudam, se dão bem nisso e crêem que sabem medicina, mas muitos sabem pouco de vida e, por isso não são os bons médicos que acreditam ser. Já foi dito que "o médico que só sabe medicina nem medicina sabe", grande verdade para se refletir. Prestando-se a servir como sacerdote que dizem que ele é, passa a ser usado. Precisa aprender a dizer não. Só assim cumprirá seu papel e romperá as amarras emaranhadas dos que lucram com seus múltiplos vínculos e o deixam só quando a casa cai.

HSaraivaXavier disse...

Não sabem mesmo Eduardo. A maioria aprende na marra. Na pior e mais dolorosa forma que é a experiência.

Mais nada é por acaso.
A medicina jurídica e administrativa é uma matéria mínima nos currículos. Direitos administrativos, trabalhistas e previdenciários são completamente ignorados.

Infelizmente o foco no ser humano precisa ser ampliado na medicina. O ser humano é composto de cabeça, tronco, membros, mente e, agora, direitos...

Curioso disso tudo é que o mesmo paciente que exige formalidade, não consegue dispô-la para a medicina.
O Sujeito quer tudo feito de qualquer forma para seu benefício, porém se o médico exigir moralidade e legalidade absoluta na transação, o médico é o culpado.

Outro dia um paciente estava chamando um colega de "desumano" porque o mesmo não aceitava fazer um exame no seu filho na "carteira" do convênio de um terceiro, ou seja, pactuar de uma fraude. Doutor mau!

Na perícia é o mesmo. Querem formalidade, mas bastava o médico exigir documentos originais ou autenticados seria o maior chororô.

Luciana Coiro disse...

Caros: li a postagem do Dr. Eduardo e fiquei matutando...

Como pode ser "fantástica", "incrível", ou seja qual for o adjetivo que se queira dar, uma explanação sobre os DEVERES DOS MÉDICOS FUNDADOS NO CÓDIGO MÁXIMO SOBRE A ATUAÇÃO DOS MESMOS ?

A que ponto chegou a distorção para que o código de etica profissional ao invés de ser naturalmente seguido e usado como parâmetro de atuação médica seja invocado com intuito de "chamar à razão por seu lado punitivo" ?

A espada que se levanta para cortar a cabeça dos médicos é a que ELES DEVERIAM ESTAR EMPUNHANDO, NÃO POR DEVER, APENAS, MAS POR DIREITO LEGÍTIMO.

AUTONOMIA NÃO É FAZER O QUE SE QUER. É, MUITO ANTES, EXIGIR CONDIÇÕES PARA FAZER O QUE DEVE SER FEITO.

SE NOS É IMPOSTO TRABALHO CERCEADO, COM PRESSÕES, SEM CONDIÇÕES ADEQUADAS, QUEM É PREJUDICADO ?

NÓS SOMOS, COM CERTEZA. MAS MAIS QUE NÓS SÃO TODOS AQUELES QUE DEPENDEM DE NOSSO TRABALHO.

Cada vez que cedemos e permitimos interferências que ferem a necessária ética em nosso trabalho prejudicamos muitas pessoas, individualmente e coletivamente.

Não exigir a liberdade mínima de conduzir nossas ações dentro da técnica, ética e tudo mais que compreende o exercício honesto da prática médica em suas diversas nuances (assistência, perícia...) é EM MINHA OPINIÃO ABRIR MÃO DE SER MÉDICO.

SER MÉDICO É COMPLEXO E EXIGE QUE O DETENTOR DO TÍTULO RESPEITE A SI MESMO, ANTES DE QUALQUER COISA.

PERDER O RESPEITO POR SI E PELO PRÓPRIO CONHECIMENTO ADQUIRIDO A DURAS PENAS É O QUE PIOR PODERIA ACONTECER PARA TODOS OS ENVOLVIDOS (inclusive os gestores, embora poucos percebam...).

Francisco Cardoso disse...

É fantástico pois ele escreveu de forma simples a plena verdade que estamos vivendo. Eu levaria horas e horas para explicar o que ele sintetizou em meia página.