sexta-feira, 4 de novembro de 2011

ARTIGO RECOMENDADO PERITO.MED

Do BLOG do FRED (Folha.com)

De juiz intelectual e artífice a "juiz de produção"

Desembargador sugere desencanto ao deixar a toga

Em carta de despedida ao presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Roberto Bedran, o desembargador Sebastião Carlos Garcia, que se aposentou no final de outubro, fez um balanço de sua trajetória desde o ingresso na carreira "no entusiasmo dos 28 anos de idade" até a data limite de permanência no serviço ativo, após quase quarenta e dois anos de magistratura.

Garcia desveste a toga, como afirmou, com o sentimento de que, "uma vez magistrado, magistrado para sempre, ao menos no âmago da alma". Não deixou processos pendentes de apreciação.

Além dos agradecimentos ao presidente da Corte e aos pares, ele manifesta "estranhamento" em relação aos novos tempos e conceitos --como a "justiça de massa"-- e sugere o desencanto com "a forma tutelar, quase de verdadeiro jugo", do Conselho Nacional de Justiça e com o "apequenamento" da Justiça comum estadual.

Eis trechos da correspondência de Garcia:

Já se tornou proverbial, quase um lugar comum, dizer que as pessoas, ao envelhecerem, transitam do saudosismo retrógrado ao franco desagrado às novas realidades do presente. É admissível que, em relação aos Juízes antigos (quase ia escrevendo Juízes velhos, dentre os quais me incluo), esse cacoete se aplique à perfeição. Afinal, os que muito e intensamente viveram seus ideais de vida e até o limite vital de suas forças e de seu entendimento se empenharam em seus misteres existenciais e profissionais, também muito haverão de ter para recordar e, naturalmente, muito para contar. Bem a propósito, aliás, a esse respeito, foi o que escreveu Gabriel Garcia Márquez, como epígrafe de seu livro de memórias, Viver para contar: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.”

Porém, quanto ao estranhamento aos novos tempos, pelas novas concepções na prestação jurisdicional e respectiva mudança conceitual do então Juiz intelectual (artífice cuidadoso tanto do vernáculo como da segurança jurídica) para o incentivado perfil atual do “Juiz de produção” e da “justiça de massa”, de um tal estranhamento, força é reconhecê-lo, não estou mesmo imune. Não sou nenhum néscio para desconhecer que o novo e a renovação, no espírito do rerum novarum, presidem os atos da vida e da natureza, agora e sempre, indeclinável e perenemente. Bem por isso, os novos tempos judiciários, com suas necessidades e urgências, suscitam também novos valores, novas concepções de trabalho, novas idéias e, logicamente, novos magistrados.

Decerto, portanto, que a inatividade funcional, ainda que por força do imperativo constitucional, chega-me em hora oportuna. Não são apenas as avalanches de processos, cada vez mais invencíveis, que me deram a convicção de que realmente chegou-me a hora de desvestir a Toga. A forma tutelar, quase de verdadeiro jugo, do Conselho Nacional de Justiça aos Juízes e Tribunais, bem assim as implícitas e explícitas investidas de apequenamento da Justiça comum estadual, em prol de um pretenso engrandecimento da Justiça federal, além do próprio gigantismo do Tribunal de Justiça que, de 36 Desembargadores em janeiro de 1970 passou a 360 integrantes com a Unificaç ão do Segundo Grau de Jurisdição, contribuíram decisivamente, senão para um desencanto, pelo menos para alicerçar a convicção de que realmente chegou a hora de ensarilhar as armas, minguadas que se encontram, em meu ânimo, as forças adequadas ao bom e necessário manejo, figuradamente, da balança e da espada sob os olhares perscrutadores de Temis e de Justitia.

Não obstante, julgo não ser demasia registrar que não deixo acervo de processos, pendentes de apreciação, sob minha Relatoria. Embora com o sacrifício de férias e licenças, subtraídas ao gozo e ao lazer pessoal e convívio familiar, todos os processos e recursos que me foram distribuídos até 30 de setembro, inclusive os redistribuídos por força da Resolução n 542/2011, encontram-se relatados e com voto proferido.

Há, no entanto, duas ressalvas a serem feitas.

A primeira é no sentido de que, embora com relatório e voto numerado integrando todos e cada processo sob minha então relatoria, nem todos os respectivos recursos puderam ser levados a julgamento. É que, conquanto os processos não julgados tenham sido por mim baixados, com voto de Relator, ao longo dos meses de agosto e setembro do corrente ano, no âmbito colegiado, como é sabido e ressabido, o seu encaminhamento à Mesa de Julgamento depende da disponibilidade do Desembargador Revisor, além das dilações necessárias de prazo às regulares intimações das partes e seus Procuradores. A mim, o que me incumbia, era elaborar o meu voto de Relator em tempo oportuno; e, isso, eu o fiz, como os registros do SAJ podem adequadamente comprovar.

A segunda ressalva, relativamente a processos sob minha então Relatoria não julgados, diz respeito a recursos incidentes sobre o tema de cadernetas de poupança. Tais processos tiveram os respectivos julgamentos suspensos por determinação do Egrégio Supremo Tribunal Federal.

De modo que, ao menos em minha consciência, sinto-me encorajado de dizer que cumpri meu dever funcional, ainda mais e superlativamente ao que, em princípio, me cumpria fazê-lo, certo que julguei tanto os processos que me cabiam, pelo princípio do juiz natural, como aqueles que a boa razão proclamou que a mim me cabiam também. Tudo e de resto com a consciência indelével na supremacia da advertência do Evangelho, de que, em nosso mister humano, tudo e o melhor que fizermos, nada mais teremos feito, senão, o que era nossa obrigação fazer. Valeu a pena? Ora, tudo vale a pena, se a alma não é pequena.

Ao fim e ao cabo, penso não incidir em demasia, menos ainda em profana heresia, ao lembrar o Apóstolo São Paulo ao dizer: “Combati o bom combate, completei a carreira e guardei a fé.” Conquanto à minha modesta e despretensiosa maneira, julgo haver também combatido o bom combate, dando-me por inteiro e integralmente à Magistratura de São Paulo; haver terminado a carreira, que foi o meu único e exclusivo ideal de vida; e guardado, a despeito de tudo, a fé na Justiça e na Jurisdição.

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