Os conceitos da palavra “acidente” envolvem, de maneira geral, os adjetivos: casual, súbito e imprevisível, mas não é exatamente isso que acontece. A ocorrência de um acidente é o evento final de uma sucessiva seqüência de comportamentos anormais, por vezes, imperceptíveis. Estes colocam em xeque o próprio conceito.
Na medicina do trabalho, por exemplo, isso é muito bem estudado e definido. Para que apenas um único acidente fatal ocorra é necessário que ocorram dezenas de acidentes de trabalho negligenciados. Para que ocorra um acidente de trabalho (dano ao trabalhador) é necessário que ocorra dezenas de acidentes no trabalho (dano material). Para que ocorra um acidente no trabalho é necessário que ocorram dezenas de incidentes (circunstancia pré-acidental sem dano). Para que ocorram os incidentes e, finalmente, é preciso que haja desvios (pequenos eventos anormais na rotina da empresa). Atualmente estuda-se o quê levaria aos desvios (uma caneta no chão, uma fio fora do lugar ou uma poça de água no corredor). A coisa chegou à análise comportamental dos trabalhadores. Ou seja, interessa para a empresa como anda a vida pessoal de cada trabalhador. Um trabalhador preocupado com dívidas, separação, filhos, doença entre outros infortúnios está mais vulnerável a iniciar toda a cascata. A coisa é tão séria que existe proposta de colocação obrigatória de profissional psicólogo no SESMT (serviço de engenharia de segurança e medicina do trabalho).
Pois bem, a detecção precoce de uma série sucessiva de desvios e incidentes e acidentes (danos apenas materiais) e a instituição de medidas necessárias para diminuí-los seriam os melhores pontos para se reduzir as mortes e os acidentes de trabalho. Acontece que os eventos precoces estão restritos ao ambiente da empresa e sob responsabilidade dos profissionais do SESMT. Ou seja, a grande maioria sequer é documentada (por exemplo, não há registro para fins de fiscalização de uma máquina que deu pane por três vezes em uma semana). O governo se restringe a fiscalizar o seguimento das Normas Regulamentadoras e CLT pelos auditores fiscais do trabalho – cada vez em menor quantidade - para proteger trabalhador, mas não tem acesso a registros sobre os eventos precoces pré-acidentais de trabalho. Uma máquina que tem um botão emperrado pode estar prestes a matar um trabalhador. Um vazamento de tubulação rapidamente resolvido, mas que vem ocorrendo periodicamente também. Da mesma forma um trabalhador que vem se queixando de lombalgia e sendo ignorado por todos.
O ponto nevrálgico da discussão é o entendimento de que a primeira parte da reação em cadeia que conduz ao acidente fatal e que transborda para fora do ambiente externo da empresa é a perícia médica do INSS. Até lá, os desvios, incidentes e acidentes (sem dano ao trabalhador) das empresas estão restritos ao ambiente de trabalho – na grande maioria das vezes. Se há um parafuso frouxo, um fio descascado e um piso molhado a empresa resolve. Se uma máquina quebra e dá defeito, a empresa resolve com o fabricante e o mecânico de manutenção. Se o trabalhador quebra, aí complica porque, ainda que dê para consertar, o governo vai saber do evento. Através da perícia do INSS como afastamento do trabalho ou, da pior maneita, uma pensão por morte acidental.
Quero chamar a atenção mais uma vez para a questão do cruzamento de dados precoces envolvendo empresa x quantidade e qualidade afastamento das atividades pelo INSS. É preciso um canal de comunicação entre a previdência e o ministério do trabalho. Uma empresa que tem números anormais de afastamento por incapacidade para determinada função pode está na véspera enterrar um funcionário. É preciso monitorar e para frear a cascata. Tomar atitude retroativa como no FAP e ações regressivas é medida terciária e apenas ameniza o problema. Uma empresa de ônibus que tem metade dos motoristas afastados por patologia mental precisa ser investigada e vistoriada. Uma empresa de construção civil que tem 30% dos serventes de pedreiro afastados por fraturas também. Um acidente de trabalho detectado pela perícia médica do INSS pode o presságio de mais uma morte no trabalho. Infelizmente na visão do perito médico a questão fica muito limitada principalmente nos grandes centros porque há muitas empresas restringindo-se ao caso específico do trabalhador atendido. Não dá para ele associar o acidente de trabalho da semana passada com o desta semana. A maioria preocupa-se com a função que o periciando desempenha, poucos sabem sobre a empresa, menos ainda associam os casos entre si. Inclusive se soubesse da relação talvez até alterassem as suas decisões.
Numa época de escassez de auditores fiscais do trabalho e crescimento vertiginoso da economia, a perícia médica se apresenta como sendo uma arma a favor do trabalhador para detecção precoce de acidentes de trabalho e, por fim, para cumprir a nobre função de ser médico – salvar mais vidas.
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